Entrevista Adélia Pessoa, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB/SE/ PRESIDENTE da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM(Instituto Brasileiro de Direito de Família)
Adélia Moreira Pessoa - Professora-Adjunta do Departamento de Direito da UFS (Aposentada) . Professora de Direito de Família e Sucessões; Promotora de Justiça Aposentada(MPE). Diretora Cultural da ASMP (Associação Sergipana do Ministério Público). Advogada - Presidente da CDDM/OAB-SE ( Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher- OAB/SE). Membro da Diretoria Nacional do IBDFAM (Presidente da COMISSÃO NACIONAL DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DO IBDFAM ) . Pesquisadora do Grupo de Pesquisa A Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e seus reflexos nas relações sociais. Autora de várias publicações.
Folha Exclusiva Mulher- A senhora está à frente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB?SE . Como ela tem atuado em prol das mulheres?
Dra Adélia- “A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher foi criada pela Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Sergipe, em agosto de 2012, tendo em vista que, por lei, possui a OAB a finalidade, dentre outras, de defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas (art. 44 EOAB - Lei 8906/94). Desde então tenho presidido esta Comissão que conta com abnegados advogados e advogadas que se desdobram neste trabalho voluntário.
Ao criar a CDDM, entendeu a Presidência da seccional Sergipe da OAB que há necessidade de atenção especial ao enfrentamento à discriminação e ao preconceito em razão de gênero, especialmente considerando que o Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e outros tratados internacionais pertinentes à matéria, incluindo tais preceitos em seu ordenamento jurídico. Além disso, a constituição brasileira estabelece que, dentre os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito (CF/88, art.3º, I e IV), figura a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Convém lembrar que, apesar da existência de igualdade no plano formal, permanecem na sociedade muitas formas de discriminação e violência em razão de gênero. Na época da Constituinte – quando eu era Conselheira Federal da OAB - a nossa luta era para o reconhecimento constitucional da igualdade entre homens e mulheres, tendo a Constituição de 05 de Outubro de 1988 acolhido, até diríamos, de maneira pedagógica - repetindo em vários artigos - essa igualdade (artigos 5º, 7º, 226). Hoje a nossa pauta é outra: buscamos a efetivação dos direitos, tema de presença indispensável na teoria jurídica contemporânea. Norberto Bobbio já alertava que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem , hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los...”( BOBBIO, N. A era dos direitos).
Assim a IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES HÁ DE SER CONSTRUÍDA, CONCRETIZADA NO VIVER SOCIAL. Dentre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) das Nações Unidas, figura o objetivo 3, o de promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres.
AVANÇAMOS muito, sem dúvida... Mas a discriminação e violência contra a mulher ainda continuam, existindo um desafio constante: a concretização da norma... A Comissão tem atribuições de atuar no acompanhamento das medidas para concretização da igualdade de gênero, na mobilização pelo reconhecimento dos direitos das mulheres e especialmente contra a violência de Gênero.
Assim tem trabalhado a Comissão no sentido de articulação com as demais instâncias correlatas à sua área de atuação, incentivando o intercâmbio de informações com os demais operadores da rede de atenção à mulher, em uma somação de esforços, com o TJSE, através da Coordenadoria da Mulher do TJSE e 11ª. Vara Criminal de Aracaju, competente para os feitos Maria da Penha, com o Ministério Publico, com as Delegacias da Mulher de Aracaju e interior do estado, Defensoria Pública, Secretaria Especial de Políticas para Mulheres do estado (SEPM), Secretários Municipais e Estaduais , Conselho Estadual de Educação, Poder Legislativo, etc.
Além disso, a CDDM/OAB-SE vem buscando atuação articulada com outros órgãos e instituições que possam contribuir nesta área, especialmente as instituições de Ensino Superior do Estado de Sergipe, já tendo várias tratativas com a UFS, UNIT, Estácio-FaSE, FANESE e PIO DÉCIMO, inclusive com a assinatura de TERMOS DE CONVÊNIO/COOPERAÇÃO TÉCNICA com as IES de nosso estado, na convicção de que é necessário aprofundar os debates e pesquisas sobre as questões de gênero, em uma visão multidimensional do problema.
A abordagem da questão da violência de gênero como um fenômeno social que exige ações públicas enfrenta diversas resistências. Primeiramente é importante considerar a ideia, ainda remanescente em nossa cultura, de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Além disso, ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu limite em uma relação familiar? É urgente desconstruir mitos e estereótipos que ainda permeiam a nossa sociedade, inclusive entre os operadores de direito.
Alguns desafios precisam ser superados para a efetivação do enfrentamento à violência de gênero, por exemplo, a dificuldade e instabilidade das mulheres, em situação de violência, para denunciar e manter a denúncia; a incompreensão e a resistência de alguns agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a falta de apoio efetivo para as mulheres em situação de violência, no âmbito privado e público; a falta de programa eficaz de atendimento ao homem autor da agressão e os elevados índices de reincidência específica.
É preciso ter sempre presente que a violência contra a mulher é violência contra a família e as intervenções do estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor, enfatizando-se o exercício da cidadania das mulheres, as possibilidades de acesso à rede de serviços e à Justiça, buscando-se a implementação de ações educativas de prevenção, o fortalecimento das redes de atendimento e a capacitação de seus profissionais.
2. Folha Exclusiva Mulher- A senhora participou ativamente dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, que terminou no último dia 10. Quais foram as diretrizes do movimento e quais os reflexos na melhoria de vida para as mulheres?
Dra Adélia - A diretriz maior que norteia a CDDM/OAB( Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher/OAB- SE) é sintetizada em um lema: "Nenhum de nós é tão bom, quanto todos nós juntos" (Warren Bannis)
Entendo que nosso papel maior tem sido a mobilização das várias instâncias da sociedade e do Estado, no âmbito dos entes federados - Estado e Municípios - independentemente de vinculações político-partidárias, no sentido de dar maior visibilidade à violência e discriminação contra a mulher. Assim louvamos o compromisso de daqueles que, de uma forma ou de outra, participaram da Campanha – por mote próprio ou porque se sentiram motivados para tanto através dos inúmeros parceiros dessa ‘cruzada’, como eu denomino a ação pelo fim da violência e superação dos preconceitos e estereótipos de Gênero.
Acredito que o nosso trabalho deve ser a sensibilização de todos no sentido de percepção dos preconceitos, da discriminação e violência que ainda persistem, estando muitas vezes à frente de nossos olhos sem serem vistos...Os reflexos para a mulher ocorrerão a médio prazo, na medida em que toda a mulher possa ter efetiva autonomia e ser protagonista de sua própria história, à medida em que os padrões sexistas possam ser desconstruídos.
Digo sempre que falamos no Gerúndio: caminhando.. superando...enfrentando. Estamos caminhando...
3. Folha Exclusiva Mulher - Em pleno século 21, uma grande parte dos homens continua achando que a mulher é de sua propriedade. O que a senhora acha que contribui para esta mentalidade retrógrada?
Dra Adélia - Essa é uma questão complexa, pois envolve padrões culturais, valendo salientar que o comportamento diferenciado do masculino e do feminino em sociedade é aprendido, institucionalizado e transmitido de geração em geração.
A diferenciação de papéis a serem desempenhados pelo homem/ mulher era (ou ainda é?) ‘fundamentada na própria natureza’(?) que teria demarcado espaços para os sexos. Sabe-se, entretanto, que os papéis são definidos culturalmente entre agentes imersos em relações de poder distribuído de modo desigual entre os sexos. Assim, filósofos, religiões, médicos e até, eventualmente a ciência, serviram para reforçar a crença na inferioridade do sexo feminino e as normas jurídicas foram instrumento de sujeição da mulher através dos séculos, contribuindo para a herança do silêncio, discriminação e da violência.
A cultura milenar engendrou a sobreposição do masculino em relação ao feminino com as antinomias: racional/ irracional, ativo/passivo, pensamento/sentimento, razão/ emoção, poder/sensibilidade, objetivo/subjetivo. E isso reflete até hoje em nosso cotidiano.
A criação dos meninos e meninas desde cedo vai construindo as desigualdades. Além das cores azul e rosa, há brinquedos das meninas voltados para a maternidade, para a vida doméstica, enquanto os brinquedos dos meninos levam à lógica das ações, a maior agressividade e poder(por exemplo, muitos ainda dizem a dois irmãos quando saem: “tome conta de sua irmã”).
De tudo isso, resulta a formação das masculinidades, cuja carga cultural ainda está presente no agir, sentir e pensar de alguns homens, com “mentalidade retrógrada”, como você diz.
4. Folha exclusiva Mulher - Ao ser violentada física ou moralmente, quais as primeiras atitudes que uma mulher deve tomar para reverter o quadro, em sua opinião?
Dra Adélia- Deve procurar ajuda de imediato. Familiares, a Polícia, Serviços de Saúde ou de Assistência Social, a Defensoria Pública, se for o caso. É muito difícil a mulher conseguir sair sozinha, sem qualquer apoio, da situação de conjugalidade violenta, porque ela se vê envolvida num CICLO DA VIOLÊNCIA em que episódios violentos são sucedidos por períodos de reconciliação, pedidos de perdão e a mulher, muitas vezes, acredita que o autor da agressão irá mudar.
Se for caso de violência que estiver ocorrendo, deve ser acionado o 190 para que seja preso o autor e lavrado o flagrante na Delegacia Plantonista, se no período da noite ou nos fins de semana/ feriados. Se o fato ocorre em período de funcionamento do DAGV (horário comercial) ou não é caso de flagrante, a mulher é atendida na DELEGACIA DA MULHER, parte do DAGV (Em Aracaju, na R. de Itabaiana com Estância). As medidas protetivas para a mulher podem ser requeridas ao juiz pela delegacia. A lei ainda prevê o encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou atendimento; recondução da ofendida e a de seus dependentes ao domicílio, após afastamento do agressor; proteção dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; separação de corpos. Outras medidas de assistência previstas: inclusão da mulher em situação de risco em programas assistenciais do governo federal, estadual ou municipal; acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial e judicial.
A mulher agredida, quando for o caso, pode procurar os Serviços de Saúde e o Relatório do médico serve como prova nos casos de lesões corporais. Após os atendimentos pelos profissionais de saúde da rede pública ou privada, constatando-se SUSPEITA DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, há de ser feita pelo serviço médico a NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA (semelhante ao que ocorre com doença contagiosa).
Se a violência é sexual deve a mulher, com urgência, procurar a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, em Aracaju, que tem serviço de atendimento 24 horas, com ginecologistas de plantão e equipe multidisciplinar que podem dar o atendimento adequado a vítimas de violência sexual de todo o estado.
5. Folha Exclusiva Mulhe -A comissão tem recebido apoio governamental para trabalhar em conjunto no que se refere à proteção dos direitos da mulher?
Dra Adélia- A Comissão tem sempre trabalhado em parceria com pessoas, órgãos e instituições que se manifestam sensíveis ao enfrentamento deste desafio de enfrentamento à violência de Gênero. Além de várias Secretarias Estaduais, como a SEPM, Secretaria de Direitos Humanos, Educação, Saúde, também há parcerias significativas com o Poder Judiciário, Ministério Público e o Poder Legislativo, inclusive através da Escola do Legislativo. É indispensável ressaltar a importância da Resolução Normativa 01/2013 do Conselho Estadual de Educação que recomendou às instituições educacionais integrantes do Sistema de Ensino do Estado de Sergipe, pertencentes à rede pública e privada, autorizadas a ofertar os diferentes níveis e modalidades da Educação Básica, a inclusão dos conteúdos programáticos e atividades que tratem dos direitos da mulher e outros assuntos com o recorte de gênero. O SESI também é excelente parceiro.
Por outro lado, devem ser destacadas as parcerias com municípios, especialmente o Município de Aracaju que, através das diversas Secretarias, vem desenvolvendo atividades de sensibilização para as questões de enfrentamento à violência de gênero. Todos viram os ônibus de Aracaju ostentando o LAÇO BRANCO na Mobilização dos Homens pelo fim da Violência contra a mulher , Campanha de âmbito Internacional que foi objeto no Brasil da Lei 11.489/2007 que instituiu o dia 6 de dezembro como o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Também com o Município de Socorro já tivemos várias tratativas com as secretarias municipais.
Vale lembrar ainda a essencial parceria com as Instituições de Ensino Superior como a UNIT, UFS, PIO X, FaNESE, FASE e ainda o IFES.
É necessário destacar que este é um problema de todos. Gosto de repetir um pensamento que procuramos aplicar: “...os três primeiros mandamentos são: descruzar os braços, jamais perder a esperança e nunca caminhar sozinho” .
6. Folha Excluisva Mulher - O número de casos de violência só cresce, a que a senhora atribui esse fenômeno?
Da Adélia - Entendo que a violência contra a mulher é um problema secular no Brasil. O que chega à Polícia e à Justiça é apenas a ponta do iceberg. Hoje há maior visibilidade dessa violência, pois a mulher busca as delegacias e a justiça quando a violência torna-se intolerável ou porque confia que terá um alívio em seu sofrimento.
Sem dúvida, houve um aumento do número de ocorrências policiais após a vigência da lei Maria da Penha(2006), e, um aumento de inquéritos policiais e de ações penais na Justiça, especialmente após a decisão do STF, de 09 de fevereiro de 2012, no sentido de considerar a lesão corporal decorrente de violência doméstica um crime de ação penal pública incondicionada, isto é, cabe ao Ministério Público denunciar o agressor, não podendo a mulher desistir, após registrado o fato na polícia. A continuidade da ação penal independe da vontade da vítima.
Sabemos que o conflito é uma realidade da vida humana. Pode-se produzir em todos os lugares e tempos em que encontrem duas pessoas ou mais em interação, bastando para isso que se produzam discrepâncias de expectativas, valores ou de interesses. Pode exteriorizar-se nas relações sociais, familiares, de trabalho e afetar toda a comunidade. No conflito que chega à violência, podemos vislumbrar uma relação interpessoal, em um dado contexto onde se desenvolve, devendo ser vista como ato e processo.
Assim também, a violência de gênero não pode ser vista como um ato isolado – ela emerge de uma combinação complexa de fatores históricos, econômicos, culturais, sociais, institucionais, interacionais, familiares, pessoais em um contexto onde a mulher, apesar do reconhecimento da igualdade nas leis, ainda, muitas vezes, é tratada como inferior. Já se disse que a violência de gênero "é uma forma de micropoder e ocorre sem distinção de credo, classe social, etnia; não se restringe ao lar, mas tem nele sua origem".
É preciso enfatizar que durante séculos, o espaço da casa privatizou os conflitos domésticos e a violência contra a mulher( violência esta que foi legitimada pela cultura) - e o direito regulou o poder disciplinar marital.
Há milênios esta cultura de sujeição da mulher foi sendo construída... Não será de forma rápida que mitos, preconceitos e estereótipos serão desconstruídos. A vigência de uma lei pode ajudar, funciona como co-adjuvante, como um dos fatores para o fim da violência. É preciso que toda a sociedade se mobilize e nunca é demais enfatizar o papel fundamental da educação. Sabemos que mudanças dos padrões sexistas, de condutas e atitudes preconceituosas não ocorrem como consequência automática da sociedade democrática.
É fundamental fomentar processos de educação formal e não-formal, inclusive através da participação efetiva da mídia, de modo a contribuir para a construção da cidadania, da pluralidade, da igualdade de gênero e do respeito à diversidade.
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